Repertório musical você sabe o que é: aquele tanto de músicas que você conhece e gosta de escutar. Repertório de piadas também, pense naquele seu tio ou amigo que sempre conta – e reconta – cada uma inúmeras vezes – não necessariamente você gosta, mas escuta, fazer o quê? E nós também temos nosso repertório lingüístico. Tudo o que a gente sabe em todas as línguas que a gente sabe, de jeitos que às vezes a gente nem sabe.
É mais ou menos assim: você diz que não sabe patavina de alemão. Até que um dia está na Alemanha e no metrô consegue perceber que aquele “Ausgang” quer dizer “saída”. Que se pega o jornal você consegue entender na legenda de uma foto de um acidente de trânsito que aqueles “zwei Autos” são dois carros. Mas não consegue fazer nadica desses paralelos na Hungria.
Se você fala francês e aterrissa em Barcelona, não vai nem ter que pensar ao descer do transporte público e ver uma flechinha indicando “sortida”. Ou vai achar graça que todo mundo te dê “bon dia” (será que um sueco acharia o mesmo?).
Facilitando mais ainda: lembra de como as suas férias em Buenos Aires deram uma melhorada no seu portunhol? Todo mundo sabe que a gente dá um jeito de se comunicar como nossos vizinhos do Mercosul, mesmo quando não falamos espanhol e eles não falam português. Isso acontece porque, como as línguas são bem próximas, temos um repertório linguístico parecido, estamos ali entre o laranja e o amarelo do arco-íris das línguas, e não entre o amarelo e o violeta.
Ok, ok, e o que tudo isso tem a ver com português como língua de herança?
Pense no país em que você mora. Na língua desse país. Em seus filhos aprendendo de modo muito intenso a língua desse país, e no nosso português como essa bailarina magrela, desdobrável e bela, sim, mas frágil e talvez exótica demais pra ser valorizada. O repertório da nossa Gisele indígena é parecido com o do hip hop local?
Se o país é de língua inglesa, não. Mãe e pai: vocês vão ter que aprender um street funk. My son: querem transmitir a você uma tradição de maculelê.
Onde mora o perigo na hora de cruzar esse rio cheio de jacarés, piranhas e outros bichos reais e imaginários? Que quanto mais distante o repertório linguístico de pais e filhos, maior a chance de uma ruptura. Ruptura no sentido de perder a comunicação (e tudo o que vem com ela) e não conseguir se entender mesmo, caso os pais falem um inglês mambembe e os filhos não dominem o português. Já pensou não conseguir conversar com seus filhos, ou que eles sejam incapazes de entender você num nível do básico do básico? Poisé, acontece. Esses repertórios tão diferentes viram uma imensa fonte de tensão, uma luta de poder, e o amor vira algo autoritário, que existe porque sim, pois não há terreno comum para a compreensão.
A boa notícia é que isso não é sina, dá para fazer acontecer diferente (e o site da BEM está cheio recursos e boas ideias pra isso).
A outra boa notícia, para a turma de Barcelona e para quem tem medo do portunhol, esse vilão que sempre nos tenta com a possibilidade de uma língua estar em cima do muro, sem estar em lugar nenhum, é que repertórios próximos não brigam tanto – dá para coexistir pacificamente entre gerações falando-se o que bem quiser, uns em espanhol, outros em português, outros em galego ou catalão. Existe o perigo de se cair no portunhol? Sim, mas a tal da tensão por uns não entenderem os outros é mais ou menos do tamanho de uma pulga comparada com os bichos-papões da turma do hip hop.
Bom mesmo seria todo mundo querer entrar na dança, sem desculpa de que é muito novo ou está velho demais pra isso.
Publicado originalmente em: https://brasileirinhos.wordpress.com/2013/05/06/tensao-linguistica/